Gesto Leirner (Duchamp) Lacaz


Texto publicado no Catálogo “Ready Made in Brasil. A ressonância mórfica duchampiana brasileira” Daniel Rangel e Têra Queiroz (orgs.) N+1 arte cultura. 1ª edição – São Paulo, 2018.
e na Plataforma Forum Permanente
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Relato crítico do 2º Ciclo de Palestras Ready Made in Brasil – Por Isis Gasparini

 

Por Isis Gasparini

“Qualquer objeto pode tornar-se uma obra de arte,
basta um gesto do artista.”
Tânia Rivera

Em 6 de dezembro, ocorreu o Segundo Ciclo de Palestras que compõem a programação da exposição Ready Made in Brasil, com curadoria de Daniel Rangel. A segunda mesa da programação reuniu Jac Leirner, Guto Lacaz e Catarina Duncan para conversar sobre a mostra, que está em cartaz na galeria da Fiesp até fevereiro de 2018.

Entre problemas ligados às práticas criativas e elaborações mais abstratas, o diálogo entre dois dos artistas que participam da mostra e a jovem curadora convidada para o debate transcorreu de forma estimulante e bem-humorada, trazendo apontamentos que efetivamente se somam ao entendimento do que podemos ver na galeria.

Uma questão que apareceu no debate e que podemos desdobrar para uma experiência mais ampla com a arte é o que o deslocamento de um objeto como prática artística possibilita pensar sobre a própria noção de arte. Mais concretamente, trata-se de elaborar o modo como esse gesto criador que se define pelo deslocamento de um objeto e, mais particularmente, para um espaço ligado ao contexto da arte permite a consciência do quanto naturalizamos o entendimento de que algo se torna obra quando alojado dentro do museu.

No início do debate, pudemos acompanhar as divergências no que se refere ao próprio conceito de readymade. Seria um objeto? Uma linguagem? Um método? Marca característica de um movimento? Um formato? Um conjunto pontual de obras históricas? Ou ainda uma ideia? É fato que mesmo Marcel Duchamp nunca chegou a uma definição ou explicação que o deixasse totalmente satisfeito[1].

Para Jac Leirner, o que os artistas reunidos na mostra fazem não pode ser chamado de readymade, uma vez que isso se refere apenas ao que Duchamp fez. Hoje, por mais que os artistas trabalhem com apropriações, deslocamento de objetos e ressignificação, esse é um gesto outro, ainda que referencie a ação de Duchamp. Nas palavras dela, o que fazem hoje aponta para “tudo o que veio depois (dele), e antes, desde as cavernas”. Portanto, ela propõe que toda obra carrega consigo uma memória referencial.

Ao contrário, para Guto Lacaz, as obras que participam da exposição se inserem no contexto do readymade e, portanto, assumem a qualificação sugerida pelo título. Para ele, é necessário “vestir o nome” da exposição, pois acredita que Duchamp inventou um conceito. E concluiu: ao adotar essa prática, produz-se um readymade. Ao ser contestado por Jac, ele brincou: “Acho que entendi tudo errado então”.

Na posição de mediadora, Catarina Duncan relembrou que Duchamp tinha a intenção de livrar o artista da manufatura da obra. E, contudo, acredita que podemos entender coisas distintas, que são possíveis diversas interpretações a respeito do termo readymade e, consequentemente, daquilo que ele significa ao ser empregado na exposição.

Em outro momento, os artistas pensaram como a escolha dos materiais com que trabalham desmistifica o fazer arte – uma vez que lidam com algo que está presente no cotidiano – e exige uma consciência a respeito do gesto que define algo como obra. Para ambos, os objetos não são escolhidos arbitrariamente, e, ao preservar suas características originais, mantém-se a dimensão de que a obra poderia ter sido realizada por qualquer pessoa. Se esse processo convoca a memória que cada objeto possui, ele assimila, muitas vezes, o acaso, o erro, os acidentes e os desvios, coisas que problematizam a autoridade do artista como alguém que teria pleno domínio do objeto que produz.

Ainda que os artistas trabalhem com objetos corriqueiros, Catarina Duncan observou que, quando eles entram em uma esfera protegida pela arte, demanda-se uma mudança do comportamento que se poderia ter diante deles. Os objetos exigem de nós, espectadores, um tipo específico de relação, com códigos e limites que são dados pelo contexto da arte.

Para os artistas, seu estatuto se transforma quando transitam de sua função cotidiana para o ateliê e para uma exposição. Guto Lacaz afirmou que essa passagem permite a objetos banais “viverem seus momentos de glória”, algo que ocorre apenas quando alguém dedica a eles uma contemplação. Desse modo, os objetos só se tornam obra quando estão expostos diante de um olhar que lhes atribui tal valor.

Em um contexto histórico mais amplo, além da noção de readymade e muito antes de ela existir, há que se considerar que muitos artefatos, ao serem deslocados para espaços expositivos, passaram por um processo de perda de sua função primeira e, consequentemente, por um curso de transformação de suas especificidades para tornar-se obra. Isso vale para um jarro da Grécia antiga, para máscaras tribais ou um ícone religioso da Idade Média. Ainda que seus elementos físicos não sejam visivelmente alterados, é ao entrar na sala expositiva que adquirem o estatuto de obra de arte, mesmo que tal valoração não existisse em seu contexto de origem. O objeto é reduzido, a partir de então, a algo que tem uma função em si mesmo e que se oferece à contemplação.

Conforme nos conta o escritor André Malraux (1951), o museu é parte dessa estratégia de deslocamento e ressignificação. Quando transportada para esse espaço, a obra se converte numa espécie de documento daquilo que significava em seu contexto original.

Hoje, por vezes, temos dificuldade de imaginar que esse espaço, assim como a noção de arte, é historicamente construído. Assim como nos acostumamos a pensar o museu e a galeria como lugar natural de existência da obra de arte, também tivemos de aprender a inverter essa equação: há uma classe de objetos que já são pensados sob esse estatuto e que são produzidos especificamente para esse lugar.

O legado deixado por Duchamp aponta para uma postura mais crítica e consciente com relação ao espaço da arte, de modo que repensar a especificidade do gesto criador e dos locais da arte se torna o cerne das poéticas de muitos artistas.

Possivelmente, todo trabalho de criação implica, em alguma medida, uma ação de deslocamento e transformação, seja de uma matéria, seja do sentido que ela evoca. Com Duchamp, fomos convidados a fazê-lo com mais frequência. Ao superexpor a arbitrariedade de um gesto que tem precedentes históricos, Marcel Duchamp desnaturalizou tanto a noção de arte quanto os espaços que a ela são dedicados.

 

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Rivera, Tânia. “Gesto Analítico, Ato Criador. Duchamp com Lacan.” In: Pulsional Revista de Psicanálise. São Paulo, n. 184, ano XVIII, p. 65-73, dezembro de 2005.

Malraux, Andre. O Museu Imaginário. Lisboa, Edições 70, 2011.


[1] Citação trazida por Catarina Duncan retirada de uma entrevista do artista a Katherine Kuh. In: Tomkins, Calvin. Duchamp: Uma Biografia. São Paulo, Cosac Naify, 2014.