Novas histórias de fantasmas em Paris
Vista da exposição Nouvelle Histoires de fantômes, Palais de Tokyo, Paris, 2014.
Há alguns anos minha pesquisa como artista se volta para o modo como o olhar assume formas complexas diante de uma obra de arte, envolvendo dinâmicas que reverberam em todo o corpo e também no espaço expositivo. A leitura sempre desafiadora do filósofo Georges Didi-Huberman ajudou-me a trazer uma nova questão para essa pesquisa: o modo como a história, por meio da obra, também devolve o olhar ao espectador.
Neste momento em que participo de uma residência artística em Paris, uma das boas surpresas foi encontrar a exposição Novas histórias de fantasmas (Nouvelles histoires de fantômes), que ocorre no Palais de Tokyo até setembro deste ano. Esta é a última de uma série de montagens que teve início em 2010, a partir de um projeto concebido por Didi-Huberman em parceria com o artista Arno Gisinger.
As exposições já passaram por diversos espaços, reinventando-se e recebendo um novo título em cada ocasião. No Brasil, tive a oportunidade de ver a montagem que foi levada para o recém inaugurado Museu de Arte do Rio – MAR, com o nome de Atlas, Suíte, acompanhada de um conjunto de conferências que teve a presença do filósofo e do artista. Em todos os lugares por onde passou ao longo desses cinco anos, houve o cuidado de recolocar o pensamento teórico embrionário que motivou o projeto.
De modo amplo, o projeto convida a pensar a obra de arte após o advento da fotografia quando, como diz Didi-Huberman, ela se torna *“inseparável de suas condições de reprodutibilidade”. As montagens são impactantes, porém complexas, sobretudo quando se quer acompanhar o percurso teórico que sua curadoria propõe. Articulando o pensamento de Aby Warburg com o de Walter Benjamin, o filósofo e historiador opera aquilo que chamou de “conhecimento por imagens que é também, inevitavelmente, um conhecimento pela montagem das imagens”.
Vista da exposição Nouvelle Histoires de fantômes, Palais de Tokyo, Paris, 2014.
A proposta é revisitar o Atlas Mnémosyne (Bilderatlas Mnemosyne), projeto que Warburg desenvolveu dentro do espaço de sua biblioteca: um conjunto de painéis nos quais coloca em diálogo fotografias, reproduções de obras de arte e outros recortes de imagens, compondo espécies de constelações que buscam em tempos e territórios distintos as formas “sobreviventes” da cultura. Atlas faz aqui referência tanto a um conjunto de mapas (como um atlas geográfico), quanto ao Titan mitológico que foi condenado a carregar o mundo em suas costas.
Aproximando o Atlas de Warburg das teorias de Benjamin, o projeto quer pensar o que é fazer uma exposição na época de sua reprodutibilidade técnica. Segundo Didi-Huberman, tal questão já está no cerne do que afirma ser a “modernidade do Atlas” e ele sustenta que hoje em dia todos os amadores ou profissionais da arte contemporânea estão – ou creem estar – familiarizados com este pensamento.
Benjamin sugere que a reprodutibilidade permitida pela fotografia dissolve a auraque tradicionalmente envolve as obras de arte: ao destituir a imagem de sua unicidade, o valor de culto dá então lugar a um valor de exposição. Didi-Huberman “redialetiza”, isto é, dá novas tensões aos conceitos de Benjamin e pensa o modo como “o valor de exposição se tornou um valor de culto no sentido pleno: da cisão entre culto e exposição, passamos ao culto da exposição”.
Ele conclui que o interesse por esse contexto no mundo da arte define uma tomada de posição com relação às politicas da arte contemporânea pensadas em grandes instituições museológicas, como essas pelas quais o Atlas passou nos últimos anos: Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia (Espanha), ZKM-Museum für Neue Kunst (Alemanha), Le Fresnoy-Studio National des Arts Contemporains (França), para citar algumas. A parceria entre um filósofo e um artista permite fazer dessas teorias um instrumento para refletir sobre as políticas que definem, por assim dizer, os modos de olhar para a obra de arte.
A expografia organizada no Palais de Tokyo projeta sobre o chão 23 vídeos editados sob orientação de Didi-Huberman que mostram imagens de diferentes épocas e linguagens, algumas já presentes na pesquisa de Warburg, outras mais recentes. Aqui, a exposição concentra-se sobre a prancha de número 42 do Atlas Mnémosyne, constituída por aproximações simbólicas que Warburg dizia compor representações do Pathos da dor. Vemos imagens da história da arte que retratam lamentações fúnebres e religiosas, sepultamento, a descida de Cristo da cruz ou, ainda, a tão conhecida representação da Pietá na iconografia cristã.
Aby Warburg: Atlas Mnémosyne, Prancha 42, Instituto Londres.
Junto a registros etnográficos e documentos da história da arte, Didi-Huberman traz também fragmentos de filmes de Eisenstein, Pasolini, Godard, Glauber Rocha, entre outros. Dispostas em diferentes escalas, as projeções transformam-se numa grande prancha que parece ter saído da biblioteca de Warburg. Ele nos convida a percorrer o silêncio dos espaços entre os quadros que se formam no chão, esse aparente vazio denso de memórias que liga uma imagem à outra, um tempo ao outro.
As projeções são contornadas pelas fotografias de Arno Gisinger distribuídas em toda a extensão das paredes do espaço expositivo. Trazendo registros feitos durante a montagem, exibição e desmontagem da exposição realizada em Hamburgo (Atlas, como carregar o mundo nas costas?), o artista coloca em diálogo diferentes momentos do projeto. Partindo de cerca de mil registros, Gisinger responde ao convite que lhe fez Didi-Huberman de pensar o modo como o arquivo poderia constituir um “atlas do atlas”. Referindo-se à intervenção de Gisinger, Didi-Huberman novamente tensiona os conceitos de Benjamin: ao “adaptar essas suites ou constelações a cada lugar de exposição, ele faz da reprodutibilidade técnica uma ferramenta de não repetição e até mesmo de singularidade”. A exposição se vale da reprodutibilidade para criar diálogos sempre renovados entre as imagens e, ainda, entre as várias montagens do projeto.
O conjunto que forma a instalação no Palais de Tokyo parece materializar o empreendimento que Warburg não pôde concluir, seu desejo de publicar as pranchas fotográficas acompanhadas de seus comentários para que pudéssemos explorar texto e imagem indistintamente como forma de conhecimento sobre a cultura e a história.
Vista da exposição Nouvelle Histoires de fantômes, Palais de Tokyo, Paris, 2014.
O projeto pretende compor exposições sem obras originais, formada por “imagens de imagens”. Gisinger chega a cada local que acolherá as montagens apenas com um pendrive no bolso. São registros que deixarão de existir após o término das mostras, antes de consagrarem-se como objetos de coleção. No texto dedicado à exposição de Paris, Didi-Huberman manifesta o desejo de que essa instalação não seja “vista como obra de arte, mas como um simples dispositivo indutor de questões”, reforçando o sentido de um atlas que nos orienta pelo mundo.
A força do projeto reside no que atravessa o tempo, naquilo que passa por Warburg, reorganiza-se com Didi-Huberman e Gisinger e chega até nós com aberturas que se multiplicam. O que fica dessa experiência não é tanto a leitura de cada imagem exibida, mas o exercício de um modo de se relacionar com a cultura e com a história que pode ser transposto para tantas outras imagens fora dessas exposições. Essa talvez seja uma das razões pela qual o Atlas se sobressai: demonstrando as possibilidades de conexões que podem ser estabelecidas entre as imagens, a exposição ainda continua a reverberar e torna-se um quebra-cabeça sempre incompleto que nos convida incessantemente a procurar os possíveis encaixes entre suas peças que se redefinem.
* Todas as citações de Didi-Huberman foram retiradas do texto de parede da exposição Nouvelle histoires de Fantômes, realizada no Palais de Tokyo, assim como da publicação feita pela instituição que inclui também textos de Arno Gisinger, Harald Falckemberg e Alain Fleischer sobre o mesmo projeto.