O que lembrar? [Mostra de Videodança: Memória de um futuro]
A ativação de uma memória e a expectativa de uma futura lembrança são coisas que nos remetem a um modo peculiar de lidar com o tempo. Em um movimento que pode ser pessoal ou coletivo, é como se descobríssemos que há algo cíclico na relação com o tempo. Como se houvesse a possibilidade de contornar sua suposta linearidade, de acelerar ou esgarçar as formas de vivenciá-lo, de aumentar ou encurtar as distâncias que ele impõe.
Embora a maioria das obras aqui apresentadas possa ser fruída de modo atemporal, os três programas de vídeo e dança foram agrupados num diálogo possível com a ideia de um antes [Corpo Memória], um durante [Corpo Trajeto] e um devir [Corpo Potência].
São conjuntos que permitem preservar as especificidades de cada trabalho e que, ainda assim, buscam localizar um fio que atravessa todos os trabalhos, mesmo que em uma costura arbitrária e transitória. Esses recortes compõem noções abrangentes que se articulam de modo ora mais evidente, ora mais enigmático, propondo que os trabalhos negociem entre si outras possibilidades de conexões.
Junto a essa programação, somam-se longa metragens que enfatizam um olhar para a dança a partir do cinema (e vice-versa), e uma instalação com obras que introduzem ao público a Memória de um Futuro, e se apresentam, por si mesmas, de forma cíclica, contínua, delineando uma espécie de tempo em estado de suspensão.
As obras convidadas para esta Mostra apontam para uma multiplicidade de saberes, de corpos e de poéticas. Algumas vezes, elas nos arrebatam, nos tiram de certo lugar de conforto e nos desestabilizam. Outras, nos pegam pela mão, nos conduzem por um gesto delicado, pela poesia e nos acolhem como que em um abraço.
Nessa multiplicidade, é pensada a própria noção de videodança. Linguagem de natureza híbrida, que já parte de uma aproximação entre as áreas da dança, do cinema e, de modo amplo, das artes visuais. Buscamos ainda expandir a própria compreensão da dança. Nesse conjunto, dança pode ser pensada a partir de uma noção ampla de coreografia: há trabalhos em que um corpo dança, mas há também aqueles formados por coreografias de câmera, de montagem, ou mesmo de formas, de imagens, palavras ou espaços.
Buscamos colocar em relação obras de diferentes circuitos e materialidades, principalmente produzidas em anos recentes, mas com algum espaço para revisitar produções realizadas há mais de uma década e que, no entanto, se renovam por identificações diversas com o presente.
O que lembrar? Como preservar e acessar nossas memórias? No campo individual, quais delas
carregam vivências que nos transportam de volta ao passado e quais outras nos atualizam no tempo presente? No âmbito coletivo, como construir maneiras de rememorar acertos mas também feridas, a fim de tentar fazer com que não se repitam certos traumas históricos.
No contexto atual, pós-com pandemia, permeados por um estado de incertezas, de delírio e esperança, a potência do vídeo e dos corpos é mostrada como lugar de expressão, de afirmação e reivindicação de um porvir mais apaziguado.
Trata-se de cultivar o gesto de transformar, o gesto de alterar, ralentar ou acelerar, gestos que, metaforicamente, sintetizam nossa relação com o tempo, com a preservação ou construção de uma memória. Gestos que podem nos fazer refletir sobre acertos que temos que fazer com o passado, que emergem enquanto apostas no presente ou que negociam os possíveis futuros. Que esse seja o convite, levado ao público por meio daquilo que, em suas singularidades, as obras tornam visível, tornam sensível. E, com isso, que possam restituir a sensibilidade e a sutileza dos movimentos que permitirão seguir os rastros desse futuro fugidio.