Sob o risco de perder o encontro com a aurora
sob o risco de perder o encontro com a aurora
O que está em risco?
No dia em que escrevo este texto, contamos no Brasil 557.223 pessoas mortas em 287 dias por um vírus e por uma ignorância que nos tira o fôlego.
Para essa exposição, não bastava dar corpo a uma frase que me parecia convidar a alguma reflexão. Minha inquietação foi pensar de que modo poderia, de fato, iniciar uma conversa. É um início, uma pequena semente.
A frase que compõe a instalação aparece em uma anotação que fiz num caderno qualquer e que guardei no início do ano passado. No meio do fluxo de pensamentos complexos, esparsos, atropelados, revisitei essas palavras em alguns momentos. Sobre viver como poesia se abre a múltiplas leituras e, dentre elas, aponta para o que pode estar contido na ideia de sobrevivência que, num momento tão peculiar e ameaçador, toca a tod_s, ainda que de diferentes formas.
Em busca de diálogos possíveis, de aproximações sutis, de gestos simbólicos e que possam fazer recuperar o fôlego, ainda que por alguns segundos, convidei quatro artistas da palavra, poetas que também atuam em outras linguagens, para que colaborassem oferecendo um fragmento de texto, verso ou frase de livre escolha, a partir do que a instalação poderia fazer reverberar em cada uma/um. Pela mediação generosa de Michel CENA7, pude contar também com Carolina, Carla Andrade e Ibu Jean Rocha nessa aposta na poesia como uma forma de resistência (e que, espero, seja apenas o começo de uma aproximação maior).
Impressas em cartões postais disponibilizados aos visitantes, essas colaborações podem extrapolar as paredes do espaço expositivo. Feitos para serem levados, perdidos, reencontrados, são pequenos versos que talvez encontrem outros leitores, diálogos e, quem sabe, reflexões.
Já o título da exposição é uma frase apropriada de um “cine–panfleto”, pequenos filmes de militância realizados no contexto de maio de 1968, na França. Ainda que distante temporal e fisicamente do nosso contexto, esse evento histórico traz uma aposta na qual acredito: o jovem, os estudantes, o que está por vir… um olhar para aquilo que ainda não se consolidou e que pode, quem sabe, caminhar na direção de um possível, de um engajamento coletivo.
Em alguns momentos me desloco, me volto aos textos e ao cinema, lugares nos quais, muitas vezes, encontro refúgio e me recolho para buscar algum norte. Esbarrei nessa frase que havia guardado, um fragmento fotografado numa exposição onde se projetavam esses filmes que mostravam as greves e ocupações estudantis daquele momento. Um movimento protagonizado por certa geração, com toda a força e o frescor que se pode encontrar numa cultura jovem.
Quando registrei esse fragmento, em 2017, o momento já nos anunciava uma ameaça, um futuro incerto, o risco de perder as oportunidades de diálogo. Hoje, em 2021, a ameaça se concretizou, superou-se em suas promessas destrutivas, tornou-se regra. Difícil imaginar um amanhã para cada um desses dias presentes, em que gestos obscuros parecem se impor em definitivo. Pelas palavras, pela poesia – quem sabe? – possamos encontrar brechas para reencontrar a aurora, um amanhã, um novo dia.