Norte, um pouco a Oeste (invenções minimalistas)
Por Rubens Fernandes Junior
Norte, um pouco a Oeste (invenções minimalistas)
Isis Gasparini tem um olhar inquieto e aventureiro. Esta exposição, Norte, um pouco a Oeste, reúne fragmentos de três ensaios – Travessia, Vermelho e Era preciso o corpo olhar para fora – realizados em diferentes países e em tempos distintos. Curiosamente, o território analisado é o mesmo: os espaços museológicos onde as obras permanecem, temporariamente, em estado de repouso. O principal foco da sua investigação está centrado no fluxo dos corpos que atravessam esses espaços expositivos e na atenta observação do seu potencial de movimento.
Nos últimos anos, Isis vem se firmando como uma artista multidisciplinar – fotografia, vídeo, instalação, dança e coreografia – e sua atitude é transgressora e experimental. Aliás, ela cria e registra imagens que intrigam justamente porque exigem nossa atenção. Exigem um mergulho num interior poético aparentemente desconhecido. Seu procedimento está centrado na captação de uma visibilidade imprecisa que desafia nossa percepção.
Travessia foi realizado nos museus de Paris. O que interessava na ocasião era percorrer aqueles espaços sacralizados e silenciosos a fim de observar os circuitos de passagem. Entender como se dá a interação entre o espectador e a obra. Na verdade, Isis discretamente seleciona os ângulos e os enquadramentos oblíquos que possibilitam uma melhor compreensão dos sutis movimentos que acontecem nos museus. Ela evidencia um fluxo pré-visualizado pelo dispositivo que estabelece uma espécie de roteiro que é percorrido pelo visitante. Mesmo que possa parecer improvável, depois de muitas horas de observação, foi possível entender que há um direcionamento previsível das posturas diante da obra, bem como um fluxo indutivo de gestos múltiplos que ampliam a experiência do ver.
A série Vermelho é bem mais intensa e provocativa. Talvez a principal questão para Isis nessa série desenvolvida nos museus de Nova York era compreender como a luz, invasiva e teimosa, determina e transforma o espaço. A mesma luz que gera desenhos improváveis e provoca um irresistível desejo de movimento. O vermelho é simbólico – recupera a luz do laboratório fotográfico, a tensão que há em alguns dos trabalhos de Cildo Meirelles e Mark Rothko – e surge através do uso de uma gelatina aplicada sobre a lente para criar um ambiente monocromático de uma inquietude fluída e contemporânea. O Vermelho nos obriga a trilhar o caminho sinuoso da memória que, evidentemente, nunca é neutra. A cor filtrada insinua as diversas camadas da imagem – delicada e mágica. Adentramos no denso e misterioso espaço e percorremos com os olhos as sutilezas das baixas luzes predominantes. Um espaço sedutor e minimalista.
Era preciso o corpo olhar para fora também foi produzida em diferentes espaços museológicos e nos direciona para outros enigmas. A luz, que invade as salas e as obras, agora é filtrada por uma espécie de membrana que permite um olhar para fora. A membrana cobre a janela, mas não completamente, e através dela é que Isis exercita sua inteligência poética. Ela propõe um questionamento sobre as imagens vistas através dessas tramas: um exterior indefinido que se distancia do referente e se transforma em abstrações. A horizontalidade da paisagem gera diferentes volumes e viabiliza uma contemplação que é ofuscada pela imprecisão dos contornos.
É preciso desacelerar o mundo para ver mais e melhor. Penetrar nos interstícios das baixas luzes e das sombras misteriosas para apreender as imagens gestadas no apagamento dos excessos e na valorização dos detalhes que clamam por uma visão mais qualitativa. A proposição do conjunto Norte, um pouco a Oeste, que ainda traz um vídeo e algumas imagens ampliadas em tecido que flutuam no espaço da galeria, é perturbar nossas percepções, embaralhar e confundir nossa visão condicionada pelo óbvio, revogar a ilusão perspectivista e possibilitar uma experiência que afete nossos sentidos. Com tudo isso a instalação permite uma multiplicidade de sobreposições e configurações pouco previsíveis, com uma leveza desconcertante.
A exposição denota uma coerência estética nos diferentes ensaios. Isis observa os gestos e as pausas, busca as sutilezas do movimento, cria artifícios e camadas que ofuscam a imagem, mascaram, abrem caminhos e propõem novas possibilidades de caminhar. Nesse sentido, sua vivência com a dança e a coreografia viabiliza e legitima sua fotografia quase performática que apreende, com desejo e singularidade, a experiência do espaço e do tempo.
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Rubens Fernandes Junior – Pesquisador e Curador de Fotografia, doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, professor e diretor da Faculdade de Comunicação da FAAP. Curador do Prêmio FCW de Arte – Ensaio Fotográfico desde 2003. Realizou inúmeras mostras no Brasil e no exterior. Em 2016 foi curador das exposições “Fotografia Publicitária Brasileira”, na Casa da Imagem, da Secretária Municipal de Cultura de São Paulo; “Ver sem Pressa”, fotografias de Lily Sverner, na FASS Galeria, SP, entre outras. Em 2017 foi curador das exposições “Romance Postal” na Galeria Utópica, SP; “Retrato – território da fotografia” no Museu de Arte Brasileira – MAB-FAAP, SP. Em 2018 foi curador das exposições “Theodor Preising – Sinfonia de uma Metrópole”, na Galeria do SESI, SP; “German Lorca – Mosaico do Tempo|70 anos de fotografia”, no Itaú Cultural, SP. Em 2019, curador da mostra “O que os Olhos alcançam – Cristiano Mascaro”, SESC Pinheiros. Recebeu o Prêmio da Associação Paulista de Crítica de Arte – APCA – de melhor curadoria em 1995 (mostra de Mário Cravo Neto no MASP) e 2006 (mostra de Geraldo de Barros na Galeria Brito Cimino); e Prêmio Marc Ferrez de Fotografia em 2014 (Pesquisa). É autor de “Yalenti”, sobre o fotógrafo modernista José Yalenti, editora Madalena, 2019; “Papéis Efêmeros da Fotografia”, ed. Tempo d`Imagem, 2016; “Sobras e Fotoformas”, fotografias de Geraldo de Barros, ed. Cosac Naify, 2006; “Labirinto e Identidades – panorama da fotografia brasileira 1946-1998” ed. Cosac Naify, 2003, entre outros.